quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Um nada em destaque

O médico assim, na lata, perguntou se ele tinha medo de morrer. Caraca. Que louco! É claro que tinha e respondeu ao médico também na bucha, assim de pronto, sem tempo para pensar. Prescrito alguns exames foi marcado o retorno após os resultados. Não precisava marcar hora era só apresentar os exames que seria atendido por ordem de chegada. Foi-lhe receitado um remedinho para tomar toda noite antes de dormir. Até que não foi tão ruim, pensou. Foi direto ao laboratório onde já estava acostumado, já era até reconhecido pelas atendentes. Deram-lhe dois frascos para coleta dos materiais. O valor, podia pagar no cartão parcelado em tantas vezes. Dispensou, disse que seria em dinheiro mesmo assim que pegasse os resultados. Foi para casa pensativo. A angustia perduraria até o resultado e se agravou um pouco só em pensar que teria que acordar com o céu ainda escuro, coletar os materiais; um era fácil era só colocar o frasco na frente do jato e coletar um pouco, já o outro dependia de outros fatores. Em casa, fez só um lanche, afinal o jejum era de doze horas e dormiu tranquilo, sem incomodar a esposa; um dos exames também exigia jejum nesse quesito. Acordou cedinho e deu tudo certo, sem muito esforço, conseguiu coletar os dois materiais e saiu apressado para o laboratório, que também atendia por ordem de chegada. Mesmo assim ainda enfrentou fila, o que só lhe angustiava mais. Chegou, pegou a senha com a simpática atendente que o conhecia, e acomodou-se numa das cadeiras enfileiradas de frente a uma televisão que passava um programa de canal de assinatura e sem volume. A espera não durou muito. Foi chamado no balcão e ficou de pé em frente a moça que atenta digitava os exames um a um, com calma, conferindo e ticando com a caneta na lista passada pelo médico para não esquecer nenhum. Eram muitos os tipos de exames. Ela conferiu os materiais coletados e disse para que entregasse assim que fosse chamado para a coleta do material principal, o sangue. Mudou de lado na bateria de cadeiras, que agora era outra bateria, mais próximas ao corredor das coletas. Agora ele ficava ao lado da televisão que passava um programa de canal de assinatura sem volume. Dessa vez a demora foi pouca. Ao ouvir seu nome completo. Chama-se a atenção aqui para o chamado em voz alta da moça que faria o furo na veia para a coleta do sangue. Um calafrio percorreu-lhe o corpo de cima abaixo ao ouvir o seu nome completo. Se tivesse no carro teria ouvido, pensou. Lentamente levantou-se e dirigiu-se ao cubículo que só tinha uma cadeira com um apoio metálico para o braço esquerdo. A atendente, experiente, quis ser simpática e fez algum comentário tentando tranquilizá-lo, apesar dos seus cabelos brancos, era evidente a agonia. Em voz mansa ela, enquanto preparava uns frascos pequenos de vidro disse de mansinho: apoie o braço esquerdo na cadeira, feche a mão. Ele já estava de camisa de manga, esperto. Com um garrote ela apertou-lhe o músculo do braço, agora abra e feche a mão, pronto. Uns tapinhas na veia e você vai sentir somente uma pontadinha, ela disse, que nada, doeu. Sem ele ver a agulhada é claro, assim que ela mandou fechar a mão ele virou o olhar para a porta do corredor e fixou os olhos num nada que lá se destacava. Ele só percebia que a moça ia trocando os frascos. Pra que tanto sangue, pensou, vou até emagrecer. Pronto, terminou. A moça apertou o braço um pouco no local do furo e pediu para que ele pressionasse com o dedo até ela concluir a identificação dos frascos, inclusive os dois que ele trouxera de casa com tanto zelo. E finalizou: agora vou colocar um esparadrapo aqui e continue pressionando por uns cinco minutos, se quiser tem café, chá e biscoitos no final do corredor.

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